segunda-feira, 23 de maio de 2011

Caso Prático

No “país do futebol” anda tudo em polvorosa. Imagine-se que o presidente do clube “Vicente do Gil” pretende impugnar contenciosamente a decisão da “Liga -Caos de Futebol – Cash and Carry”, que impediu o acesso do clube à 1ª divisão do Campeonato Nacional de Fubebol, na sequência de alegadas irregularidades quanto ao estatuto de um dos seus jogadores. (itálico meu)
Indignados, os dirigentes da Liga -Caos, bem como os da Federação Nacional de Futebol (FNF), alegam que os clubes de futebol se encontram impedidos de recorrer aos tribunais para resolver litígios de “natureza desportiva”, invocando para tanto legislação desportiva e os estatutos de uma sociedade anónima futebolística multinacional – a F.I.F.A. Desta forma, Sargentão das Dúzias e Gisberto Maravedi, presidentes da Liga e da FNF, respectivamente, pretendem fazer com que o dito clube de futebol desista ou renuncie à utilização de quaisquer meios processuais, ameaçando com sanções disciplinares e indemnizações monetárias que decorreriam de uma alegada sanção da F.I.F.A, incidente sobre “todo o futebol português”. Por seu lado, o dirigente do clube “Vicente do Gil”, António Confúzio, manifesta-se disposto a ir até “às últimas consequências” na defesa das suas pretensões, nomeadamente recorrendo à intervenção da justiça constitucional e europeia.

In O Processo Administrativo em Acção (parte IV - Provas de Exame Final), Vasco Pereira da Silva


Antes de responder às perguntas, uma nota inicial: esta Federação Nacional de Futebol (FNF) terá poderes sancionatórios no âmbito de uma actividade que é não apenas desportiva, mas também de cariz marcadamente económico e de interesse geral para o país (os números falam por si). Um desses poderes sancionatórios é precisamente o que foi aqui utilizado – a decisão de despromoção de um clube (in casu, da 1ª Divisão para a 2ª), por uma estrutura para-judicial (um Conselho de Justiça, deduz-se, embora não seja expressamente referido no enunciado).
Terão estes litígios lugar na jurisdição administrativa? Entende-se que sim, porque embora não estejamos perante pessoas colectivas públicas, mas sim privadas, estas fazem uso de poderes públicos (4º/1/a) ETAF).


Suponha que é advogado e que lhe cabe defender a causa do clube “Vicente do Gil”. Indique:
. Quais as providências cautelares que utilizaria para assegurar a defesa do seu cliente e com que argumentos de ordem processual.
. Qual o meio processual principal (ou quais os meios) e quais os pedidos mais adequados à tutela dos interesses em causa, assim como quais os principais argumentos de facto e de direito em que podia basear a defesa do seu constituinte.


Parece-me que o mais acertado seria optar por uma providência cautelar conservatória, ou seja, uma actuação imediata no sentido da manutenção do clube na 1ª Divisão. Assim, optaria pela providência cautelar prevista logo na alínea a) do 112º/2 CPTA - isto é, pela suspensão da eficácia da decisão de despromoção do “Vicente Gil”. Esta opção mostra-se a mais favorável ao clube, porque, em princípio, a decisão ficaria suspensa automaticamente  assim que o requerimento desse entrada, o que significa que o “Vicente Gil” poderia comparecer aos jogos enquanto não fosse tomada a decisão de conceder ou não a providência cautelar requerida (128º/1 CPTA). 
 
O 120º CPTA estabelece os critérios de decisão para a adopção de uma providência cautelar. Não havendo dúvidas de que a pretensão do clube fosse proceder no processo principal, estaria concedida a providência cautelar sem ser necessário ponderar os critérios consagrados nas alíneas b) e c). No entanto, como no nosso caso não é liquído que o processo principal vá ser decidido favoravelmente à causa que defendo, seria necessário provar que há periculum in mora (alínea b), bem como a existência de fumus boni iuris (ie, que seja provável – note-se que é diferente do “evidente” da alínea a) - que a pretensão do clube venha a ser julgada procedente). 
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA lembra que o critério para aferir da possibilidade de se produzirem "prejuízos de difícil reparação" não deve ser o da susceptibilidade/insusceptibilidade de avaliação pecuniária dos danos, mas sim o da maior ou menor dificuldade que envolve o reestabelecimento da situação que deveria existir se a conduta ilegal não tivesse tido lugar. Ora, é fácil de ver que os prejuízos resultantes para o “Vicente Gil” serão de difícil reparação - e mais abaixo perceber-se-á que também não seriam susceptíveis de avaliação pecuniária, pois é impossível prever ao certo a valorização dos jogadores em cada época ou a afluência aos jogos, por exemplo - uma vez que o campeonato, disputado por quase duas dezenas de clubes, decorre sem interrupções, ao ritmo de um jogo por semana, e se o “Vicente Gil” ficar impedido de jogar enquanto decorrer todo o processo, mesmo que no final venha a obter uma decisão favorável não poderá repetir os muitos jogos que perdeu por falta de comparência. Este é o dano mais óbvio, mas existem outros relacionados com a perda de chance, que explicarei a seguir, quando expuser os argumentos de facto. Está demonstrado que há periculum in mora. Sendo esta uma providência conservatória, e não sendo manifesta a falta de fundamento da pretensão do meu cliente (encontramos aqui o fumus boni iuris num sentido diferente do da alínea c)), parece que a providência poderá ser concedida, nos termos do 120º/1/b).

No que respeita ao processo principal, do qual a providência é, como se sabe, instrumental, estaremos perante uma acção administrativa especial (46º CPTA) de impugnação de uma decisão de uma entidade privada que actua ao abrigo de normas do Direito Administrativo. Esta impugnação é, segundo o 51º/2 CPTA, equiparável à impugnação de um Acto Administrativo. 
 
Argumentos de direito: a decisão de despromoção do clube “Vicentes de Gil” da 1ª para a 2ª Divisão viola manifestamente o princípio da Proporcionalidade, na sua vertente da Proibição do Excesso, o que corresponde a violação de lei e tem como consequência a anulabilidade (135º CPA). Vejamos porquê, analisando os factos:
  1. Estão em causa irregularidades quanto ao estatuto de apenas um jogador. Será necessário prejudicar o resto do plantel (constituído por mais 20 jogadores) e o próprio clube? É este o meio menos gravoso para punir o "Vicente de Gil"? O dito jogador teve assim tanta influência nos resultados da equipa tendo em conta que só jogou 4 jogos?
  2. É sabido que existe alguém a controlar, em cada jornada, se os jogadores que disputam as partidas estão em situação regular – o chamado delegado da Liga. Assim, não deixa de ser estranho que, tendo o jogador participado em 4 jogos, nunca o clube tenha sido advertido da situação irregular em que este se encontrava, pelo que não pode a FNF alegar que o meu cliente tinha conhecimento desta situação.
  3. É também dado adquirido que, para os clubes mais pequenos, como é o caso do “Vicente Gil”, é muito diferente jogar na 1ª ou na 2ª Divisão. Estas diferenças vão bem além do prestígio para o clube: manifestam-se, antes, essencialmente, na situação financeira do clube. É que é preciso lembrar que, jogando na 1ª Divisão, são incomparavelmente maiores as receitas em cada jornada, desde os bilhetes dos jogos (em especial quando estes são contra os clubes "grandes") até ao montante angariado com a transmissão televisiva dos jogos (esta é a principal fonte de receitas dos clubes de futebol).
  4. Uma chamada de atenção ainda para duas coisas muito importantes: a primeira diz respeito à valorização dos jogadores do clube, que é muitíssimo maior quando estes jogam na 1ª Divisão, podendo vir a ser comprados, a meio ou no final do campeonato, por clubes com maior orçamento. A segunda prende-se com a possibilidade de aceder às competições europeias, que só é possível através de uma boa classificação na 1ª Divisão. E se na 1ª Divisão já são muito maiores as probabilidades de valorização dos jogadores e de angariar receitas directas como as referidas supra, o que fará nas competições europeias, onde os clubes chegam a ser "presenteados" monetariamente por cada vitória ou empate.
Os argumentos (de facto e de direito) expostos constituem a base do pedido de impugnação, mas servem também para justificar a necessidade da providência cautelar conservatória requerida.


N.B. Trata-se de uma hipótese meramente académica, pelo que qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. Na sua resposta pode ainda recriar a história com os elementos que entender necessários (sempre privilegiando as questões processuais (…). 

 

Inês Vouga 

 
 

Sem comentários:

Enviar um comentário