terça-feira, 24 de maio de 2011

Evolução do Contencioso Administrativo nos Sistemas Britânico e Francês


   O Contencioso Administrativo surgiu na Revolução Francesa de 1789 e foi marcado por uma ligação da Administração à Justiça, que corresponde à fase do “pecado original”, havendo uma confusão entre a função de administrar e a função de julgar, ou, nas palavras do Prof. Vasco Pereira da Silva, “promiscuidade entre as tarefas de administrar e de julgar”. A lei proclamava a não interferência na Administração por parte dos tribunais judiciais com a justificação do princípio da separação de poderes, do ilustre Montesquieu. Dizia no seu “De L’Esprit des Lois” que o poder judicial “é o poder através do qual o Estado julga e pune os particulares pelos seus diferendos”. Logo, segundo a lógica da separação de poderes, nunca poderia um tribunal julgar a Administração, porque estava fora do “verdadeiro” poder judicial. Para mais, os juízes seriam apenas, a partir da Revolução Francesa, bocas que pronunciavam as palavras da lei. Entidades desprovidas de poder, os juízes eram invisíveis ou nulos uma vez que não estavam ligados a nenhum Estado.
   Em 1799 foram então criados os tribunais administrativos (o primeiro terá sido o “Conseil d`État”), incumbidos de julgar a Administração, mas que não eram verdadeiros tribunais, tratando-se de órgãos com funções meramente consultivas e também funções de resolução de litígios administrativos, através da emissão de “pareceres”, que eram sujeitos a homologação do Chefe de Estado.
   A reversão desta situação de “promiscuidade” só veio a ser atenuada com “o milagre da jurisdicionalização” - o que o Prof. Vasco Pereira da Silva denomina de “baptismo”, ligada ao surgimento do Estado Social - que consiste na progressiva transformação dos tribunais administrativos, ou antes, dos órgãos administrativos de controlo da administração, em verdadeiros tribunais e que vem a ocorrer desde os finais do século XIX e durante o século XX. Simultaneamente o Direito Administrativo deixa, progressivamente, de ser o direito que “protege” a administração, que a privilegia nas relações com terceiros. Como escreve Freitas do Amaral o Direito Administrativo “ao nascer” fê-lo com base na ideia de que a administração, os seus órgãos e agentes, encontravam-se em posições diferentes das dos particulares uma vez que prosseguem o interesse público, devendo pois dispor de poderes de autoridade necessários à realização desse interesse geral. Este estaria acima dos diversos interesses particulares. O Direito Administrativo passa a ser o “direito regulador das relações jurídicas administrativas”.
   Uma terceira fase seguiu-se a estas duas (a partir da década de setenta do Século XX): a do “crisma ou confirmação”. É a afirmação jurisicional e subjectiva do Contencioso Administrativo. Ocorre primeiro numa base constitucional através da consagração em Lei Fundamental de verdadeiros modelos de Contencioso Administrativo, a equiparação dos tribunais administrativos aos tribunais comuns, com idêntica natureza, e a afirmação da independência das jurisdições administrativas, tal como são independentes as jurisdições comuns. Em segundo lugar assiste-se ao surgimento de uma dimensão europeia do Direito Administrativo. Necessária pelo facto de a própria União Europeia ser uma maquina administrativa (surge um Direito Administrativo de nível europeu). Necessária pela diversidade de sistemas administrativos que “populam” a Europa que impõe um movimento de convergência dos mesmos. A europeização contribuiu para a superação dos "traumas de infância" do Contencioso Administrativo, a par da constitucionalização, visando a garantia de uma efectiva e plena tutela jurisdicionalizada e subjectivizada. Existe ainda uma alteração do paradigma do Contencioso Administrativo, designadamente em relação à tutela cautelar e urgente, e à regulação dos direitos dos cidadãos nas relações de procedimento administrativo.
   Este sistema de administração executiva, que nasceu em França, vigora hoje em quase todos os países continentais da Europa ocidental, incluindo Portugal, desde 1832.



   No sistema administrativo de tipo britânico ou de administração judiciária, a separação de poderes significava a autonomia e independência de cada um dos poderes, através de uma limitação recíproca dos mesmos, mas daí resultava a sujeição da Administração aos tribunais comuns e às regras do direito comum. Os litígios entre as entidades administrativas e os particulares eram da jurisdição dos tribunais comuns e não da competência de tribunais especiais. Em consequência da consagração do império do direito (Rule of Law), o Rei, os outros órgãos e agentes da Administração Pública, os municípios e os particulares estão todos submetidos ao direito comum, não dispondo assim de privilégios ou prerrogativas de autoridade pública. Ainda segundo o princípio da separação de poderes, o Rei não podia resolver questões contenciosas, sendo também proibido de dar ordens aos juízes. O Rei ficou ainda sujeito ao direito, especialmente ao direito consuetudinário, que resultava de costumes sancionados pelos tribunais (Common Law). Os direitos, liberdades e garantias de todos os cidadãos ingleses foram consagrados no Bill of Rights (1689),que estabeleceu que o direito comum era aplicável a todos os britânicos, de qualquer parte da Grã-Bretanha. Nos primórdios, o sistema podia ser assim caracterizado pela não existência de Direito Administrativo.
   Mas com o surgimento da Administração Prestadora, o sistema britânico vai passar por dificuldades, no que respeita à ligação entre Direito e Justiça Administrativa, que não tinham ocorrido na fase do "pecado original". Devido à intervenção dos poderes públicos a nível económico, social e cultural nos finais do século XIX e século XX, surgem normas reguladoras da actividade administrativa e assim se começou a criar e a aplicar Direito Administrativo no Reino Unido.
   O controlo da Administração pelos tribunais comuns, enquadrados num poder judicial independente, revela-se ineficiente, graças à criação dos "administrative tribunals" (órgãos administrativos especiais). Estes órgãos possuem tarefas administrativas, mas também jurisdicionais, de controlo da actuação da Administração. Esta situação levou a uma "confusão" das relações entre Administração e Justiça, que se manifestou pela intervenção conjugada dos "administrative tribunals" com os "courts" (tribunais comuns). Diferentemente do sistema francês, em que na fase do "baptismo" do Contencioso Administrativo, os órgãos administrativos especiais transformaram-se em verdadeiros tribunais, no sistema britânico, surgiram os "administrative tribunals" que têm poderes de fiscalização da Administração, embora a "última palavra" tenha sempre que caber aos tribunais comuns ("courts") e não aos órgãos administrativos especiais. Nos dois sistemas, quem controla a Administração são tribunais independentes e autónomos, mas no sistema de administração executiva são os tribunais especiais, e no sistema de administração judiciária são os tribunais comuns.
Na fase da "confirmação" ou do crisma do Contencioso Administrativo, o Reino Unido, só nos anos 70, adquiriu dimensão constitucional. A esta "constitucionalização" acresce uma "especialização" progressiva do Contencioso Administrativo, designadamente através da reforma de 1977, que criou um tribunal especializado em matérias administrativas, no âmbito de uma unidade de jurisdição ("Queen's Bench Division" do "High Court") e da reforma de 1992, que estabeleceu alterações em matéria de garantias administrativas, nomeadamente a introdução de regras procedimentais. Esta última reforma contribuiu também para ser elevado a princípio da constituição material a regra segundo a qual existe um controlo do poder judicial relativamente às decisões das entidades administrativas.
   Relativamente à europeização do Contencioso Administrativo, a expressão de "Processo Administrativo Europeu" tem cada vez mais sentido, especialmente na actualidade. No sistema britânico, existe uma grande influência do Direito Europeu no Direito Administrativo.
É particularmente evidente a influência da constitucionalização e da europeização no que diz respeito à organização do sistema de garantias dos particulares, designadamente através da compatibilização das garantias administrativas e das judiciais. Os particulares podem assim sempre impugnar as decisões das entidades administrativas junto de um tribunal comum. Relativamente aos meios processuais, também existe uma grande influência, devido ao direito de acesso a um julgamento equitativo e ao Direito Cautelar Europeu, que implicou um alargamento da tutela cautelar.
   Este sistema de administração judiciária, com origem em Inglaterra, vigora actualmente na generalidade dos países anglo-saxónicos, incluindo os Estados Unidos da América.



Bibliografia:

- AMARAL, Diogo Freitas de – “Curso de Direito Administrativo”, Tomo I, 2006, Almedina
- ANDRADE, José Carlos Vieira de – “A Justiça Administrativa” (Lições) 8.ª edição, 2007, Almedina
- SILVA, Vasco Pereira da – “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2009, Almedina

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