terça-feira, 24 de maio de 2011

O desenvolvimento do Contencioso Administrativo no contexto europeu

“A evolução do Contencioso Administrativo português irá ser cada vez menos um processo autocéfalo. Nunca o foi deveras. Mas se, até agora, as influencias mais marcantes provieram sucessivamente de dois sistemas nacionais – o francês e o alemão -, ela irá processar-se, doravante, cada vez mais nos quadros multilaterais da União Europeia e do Conselho da Europa. A uniformidade de aplicação do Direito Comunitário pelos tribunais nacionais irá conduzindo (como se verificou já no domínio do contencioso pré-contratual) à progressiva harmonização dos remédios, impelida ora pela normação comunitária ora pela sindicância da efectividade dos meios processuais de Direito interno pelo juiz comunitário”Sérvulo Correia

No inicio, aquando da criação da Comunidade Europeia, face ao cariz principalmente económico da integração, a harmonização jurídica dos Estados Membros incidia sobretudo em matérias de direito económico e afins. Foi com a criação da União Europeia que o âmbito da integração verdadeiramente se alargou a outras áreas (com o surgimentos dos novos “pilares” da construção europeia), o que implicou, naturalmente, uma maior abrangência no que toca à harmonização dos edifícios jurídicos dos vários estados, para a construção de um verdadeiro “Direito da União”. Daqui resulta uma influência em dois sentidos: não só os direitos estaduais se devem adaptar ao direito da União, como também o direito da União integra os princípios dos vários direitos estaduais.
No contexto de todo este movimento jurídico europeu, o direito administrativo, onde naturalmente se inclui o seu contencioso; sofreu uma grande influência do direito comunitário, na medida da importância da Administração Pública no que toca à aplicação permanente do direito comunitário. Entre estas influências no próprio desenho da Administração, é de destacar o impacto contínuo na configuração da função administrativa, na organização administrativa, no procedimento administrativo, etc... Especificamente quanto ao contencioso administrativo, este tem sofrido grandes influências quanto ao seu âmbito, quanto aos poderes do juiz administrativo, quanto ao controlo judicial do poder discricionário, entra várias outras áreas. Importa, para melhor se entender este tema, analisar alguns exemplos concretos das afirmações que se estão a produzir.
Hoje em dia, pode-se invocar num tribunal administrativo pertencente ao território português, a invalidade de um acto de cariz comunitário. Se o juiz nacional considerar que está perante uma invalidade, sendo relevante para a decisão em causa, deve suscitar perante o Tribunal de Justiça a questão prejudicial da apreciação da validade do acto de direito comunitário.
Também se registam mudanças no plano da responsabilidade extracontratual do Estado por acto do poder judicial, aquando de incumprimento do direito comunitário. Por influência comunitária, além dessa responsabilidade poder ser gerada por actos normativos, passou também a considerar-se que podia resultar de actos administrativos ou jurisdicionais.
Há igualmente que referir a obrigação de os Estados revogarem actos constitutivos de direitos que sejam contrários ao direito comunitário. A este respeito, em clara dissonância com o disposto no art. 58º nº2 CPTA, o direito comunitário estipula que a revogação pelo Estado deverá ter lugar no prazo que a Comissão Europeia fixar; a revogação deve ser feita em nome do interesse da comunidade, mesmo expirado o prazo fixado pelo direito nacional para a revogação dos actos constitutivos de direitos.
Outro aspecto não menos importante, é a possível conformação de caso administrativo decidido com direito comunitário posterior. A questão que se coloca aqui é a seguinte: em algum caso decorre do direito comunitário a obrigação de revogar uma decisão administrativa definitiva? Tudo se desenvolve em volta da ponderação da articulação do direito nacional com o direito comunitário, por um lado, e com a segurança jurídica, por outro. Ora, na sequência do caso “Kuhne”, o TJ entendeu que os órgãos administrativos estão obrigados, segundo o princípio da lealdade e cooperação consagrado no art. 10º CE, a reapreciar um acto administrativo definitivo anterior para o conformar com a interpretação pertinente do direito comunitário levada a cabo posteriormente pelo TJ, desde que se trate de um caso administrativo decidido.
Várias destas questões, na mesma medida em que indubitavelmente constituem avanços no contencioso administrativo português, podem do mesmo modo constituir desafios, por exemplo, no que ao princípio da igualdade diz respeito. Na medida em que se tenta transpor para o direito interno alguns mecanismos de direito comunitário, moldando a execução do direito administrativo às exigências da União, iguais exigências tem de dar o direito nacional à execução do respectivo direito administrativo. Ou seja, não pode haver internamente, decisões menos favoráveis para os particulares por força do direito de fonte interna, do que o estipulado por outras fontes do direito comunitário. Se de outro modo se procedesse, estar-se-ia a violar o princípio da igualdade, no que toca ao tratamento judicial de nacionais e não nacionais, o que violaria ao mesmo tempo o direito português e o direito comunitário.
Concluindo, esta influência europeia que o contencioso administrativo tem sofrido visa dar uma maior efectividade ao direito comunitário na ordem interna dos Estados Membros, no quadro do tratamento dos cidadãos com respeito pelo princípio da igualdade perante o direito comunitário. Neste seguimento, e para as visões mais europeístas, pode-se mesmo vir a discutir o possível surgimento no futuro de um verdadeiro contencioso administrativo europeu harmonizado, que seria expressão de um sistema administrativo europeu.

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