segunda-feira, 9 de maio de 2011

Processos Urgentes - Caso II página 41

 
   Em primeiro lugar, e visto que o caso sub judice se enquadra na matéria dos processos urgentes, urge fazer uma breve introdução acerca dos mesmos.
   O direito à tutela judicial efectiva em matéria jurídico-administrativa exige que ao lado da tutela cautelar tenha sido instituído um outro mecanismo que permite uma resolução célere e definitiva de determinados litígios. Enquanto as providências cautelares são acessórias de um processo principal, que terá que ser proposto ao mesmo tempo ou num determinado prazo após a sua instauração, sob pena de caducidade da providência cautelar (artigo 123º do CPTA); os processos urgentes enquanto processos principais que são acabam por resolver logo e de modo definitivo a questão de fundo, só que de modo mais célere e flexível do que relativamente aos meios de acção não urgentes.
   O art.36.º do CPTA vem permitir o recurso à tramitação urgente em quatro tipos de questões:
  • Impugnações relativas a eleições administrativas
  • Impugnações relativas à formação de determinados contratos
  • Intimações para a prestação de informações, consulta de documentos ou passagem de certidões
  • Intimações para protecção de direitos, liberdades e garantias
   Estamos perante situações que pela natureza que revestem exigem uma tutela jurídico-administrativa célere, urgente, sob pena de perderem o fim útil de tutela efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares.
   No caso em apreço, estamos perante um processo de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias (art.109.º e seguintes do CPTA).
   O processo de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias tem por base o art. 20º/5 da CRP, introduzido pela revisão de 1997, que dispõe o seguinte: “Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.”. No CPTA, encontra-se regulada nos arts. 109.º e seguintes. Esta protecção justifica-se tendo em conta a ligação dos direitos, liberdades e garantias com o princípio da dignidade humana, e, também, pela consciência do perigo acrescido da respectiva lesão que pode ocorrer.
   De acordo com a doutrina do Prof. Mário Aroso Almeida, esta intimação é” um instrumento que se define pelo conteúdo impositivo, condenatório, da tutela jurisdicional a que se dirige, cobrindo, de forma transversal, todas as relações jurídico-administrativas”, e que tanto pode sobrepor-se à acção administrativa comum, como à acção administrativa especial, desde que preenchidos os seus pressupostos materiais e formais.

Pressupostos:
·         A urgência
    Em primeiro lugar, é necessária a urgência da decisão de mérito para evitar a lesão ou inutilização do direito, sem a qual deverá haver lugar a uma acção administrativa normal, a qual pode ser acompanhada de uma providência cautelar, de acordo com o art.109.º/1 do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA).
   Este pressuposto tem um carácter gradativo, na medida em que depende das circunstâncias do caso concreto, que envolve critérios e juízos de valor próprios de uma situação de necessidade, sendo que a lei atribui ao juiz uma prerrogativa de avaliação, entendida como um poder – dever, na medida em que se destina à protecção de direitos fundamentais.
·         O decretamento provisório da providência cautelar
   O decretamento provisório da providência cautelar não deve ser possível ou suficiente, tendo, desta forma, a intimação um carácter subsidiário face a este (arts.109.º/1 in fine e 131.º CPTA), o que, segundo a doutrina do Prof. Vieira de Andrade, é uma afirmação “pleonástica”, na medida em que o que é necessário neste processo urgente é uma decisão de mérito, isto é, uma decisão definitiva, para evitar a lesão do direito, excluindo-se automaticamente o processo cautelar. Deste modo, as condições de suficiência e possibilidade devem ser aferias por contraposição às características próprias das medidas cautelares, nomeadamente a instrumentalidade e a provisoriedade. Ao contrário deste tipo de processo urgente, a célere emissão de uma decisão sobre o mérito da causa não é indispensável para proteger o direito, liberdade ou garantia, desde que se assegure que o decretamento da providência cautelar seja realizado com a maior urgência.
   Para concretizar a impossibilidade e a insuficiência, a primeira ocorre nos casos em que o juiz, para se pronunciar terá necessariamente de ir ao fundo da questão e falta-lhe a legitimidade para tal, porque está no âmbito de um processo cautelar; a segunda traduz-se nas situações em que a tutela do particular só se satisfaz mediante uma tutela que incida de forma definitiva sobre o fundo da questão, e não mediante uma medida cautelar, que será provisória.
   Quanto às situações que estão nestas condições, são todas aquelas em que o factor tempo obriga à emissão de uma decisão que necessariamente interfere com o objecto de uma eventual acção principal, isto é, de acordo com a Prof. Isabel Celeste Fonseca, situações de “natureza improrrogável, que reivindicam uma composição jurisdicional inadiável”, como é o caso de campanhas eleitorais, situações sujeitas a um período de tempo curto, ou que digam respeito a direitos que devam ser exercidos num prazo ou em datas fixas, como o direito de manifestação.
·         A legitimidade
   A legitimidade cabe aos titulares dos direitos, liberdades e garantias, enquanto posições jurídicas subjectivas, embora o Prof. Vieira de Andrade admita a acção popular, desde que tal respeite a disponibilidade legítima dos direitos pelos titulares, o que a Prof. Carla Amado Gomes critica, na medida em que ou se trata de pretensões jurídicas individualizadas, as quais não correspondem a prestações universais, ou estamos perante interesses de fruição de bens colectivos.
·         O pedido
   O pedido trata-se da condenação da Administração a uma conduta positiva ou a uma abstenção (art.109.º/1 e 3 CPTA).
·         Tribunal competente
   À luz art.4.º/ a) do ETAF cabe à jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto a tutela dos direitos fundamentais, mais concretamente, os tribunais administrativos de círculo, que são competentes para tomar conhecimento dos pedidos de intimação em primeira instância, de acordo com o art.44.º/1 do mesmo diploma.
   Quanto à competência territorial, esta cabe ao tribunal do lugar onde deva ter ser praticada a acção ou omissão pretendidos (art.20.º/5 CPTA).

   In casu, Francisco, presidente da Direcção do clube de futebol A, vem alegar a ilegalidade de determinadas escutas telefónicas obtidas num processo crime para um processo disciplinar instaurado pela Comissão Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional em que o presidente é acusado da prática de infracção disciplinar de corrupção na forma tentada. Francisco alega que tais escutas, usadas como prova violam o seu direito à reserva da intimidade da vida privada, consagrado no art.32.º/8 CRP.
   Ora, de acordo com o ponto II do Acórdão do STA de 30/10/2008: “A obtenção de prova através violação do sigilo inerente aos meios de comunicação privada é excepcional, só sendo possível de adoptar quando, por um lado, haja a convicção de que a mesma é indispensável para a descoberta da verdade ou que, de outra forma, a prova seria impossível ou de muito difícil obtenção e, por outro, quando em causa estiverem os crimes enumerados no n.° 1 do art. 187. º do CPP, os chamados crimes de catálogo “.

Passo a citar o nº1 do art.º187 do Código de Processo Penal:

Art. 187.º
Admissibilidade

1. A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público, quanto a crimes:
a)      Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos;
b)      Relativos a tráfico de estupefacientes;
c)       De detenção de uma arma proibida e de tráfico de armas;
d)      De contrabando
e)      De injúria, de ameaça, de coacção, de devassa da vida privada e perturbação da paz e do sossego, quando cometidos através de telefone;
f)       De ameaça com prática de crime ou de abuso e simulação de sinais de perigo; ou
g)      De evasão, quando o arguido haja sido condenado por algum dos crimes das alíneas anteriores.

   Em causa está um crime de corrupção na forma tentada, logo, à partida, as alíneas b) a g) não estão preenchidas. Resta-nos averiguar qual a pena aplicada a este crime, para saber se esta se enquadra na alínea a).
   Passo a transpor dois artigos do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional que dão resposta a esta questão.

Artigo 26.º
Aos dirigentes

   As penas aplicáveis aos dirigentes dos clubes pelas infracções disciplinares que cometerem são:
a)       Advertência;
b)       Repreensão por escrito;
c)       Multa;
d)       Suspensão.
Artigo 102.º
Da corrupção

1.       Os dirigentes que participem ou declarem ter participado em actos de corrupção da arbitragem previstos no n.º 1 do artigo 52.º são punidos com a pena de suspensão de dois a dez anos e multa de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros) a € 25.000 (vinte e cinco mil euros).
2.       São punidos com a pena de suspensão de um a oito anos e multa de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros) a € 25.000 (vinte e cinco mil euros) os dirigentes dos Clubes que cometerem as faltas previstas nos artigos 53.º, n.ºs 1 e 3, 54.º e 55.º, n.º 2.
3.       No caso do n.º 2 do artigo 52.º e do n.º 4 do artigo 53.º os dirigentes são punidos com a pena de suspensão de 6 (seis) meses a (dois) anos e multa reduzida a um quarto.

   Conclui-se que a este crime não pode ser aplicável pena de prisão, logo, excluí-se também a aplicação da alínea a) do art.187.º/1 do CPP. Assim, ao abrigo do preceituado artigo, a transposição das escutas telefónicas obtidas em processo crime para processo disciplinar é ilegal.
   No que concerne à urgência do processo, dissemos anteriormente que este pressuposto
depende das circunstâncias do caso concreto, que envolve critérios e juízos de valor próprios de uma situação de necessidade, tendo o juiz o poder-dever de avaliação da situação. In casu, penso estar preenchido este pressuposto devido aos graves danos que a manutenção das transcrições no processo disciplinar lhe causava, o que se compreende dada a importância do cargo ocupado e à visibilidade que o mesmo tem. Há um perigo de lesão séria.
   Ainda, Francisco não podia recorrer em tempo útil a uma providência cautelar. Pois, como se diz no Acórdão, muito embora Francisco tenha pugnado pela ilegalidade da utilização dessas escutas, por violação do direito à reserva da intimidade constitucionalmente reconhecido, o certo é que as mesmas foram valoradas no referido processo daí resultando a sua condenação na pena de um ano de suspensão do exercício das funções de dirigente no âmbito das competições organizadas pela Liga e na multa de 5000 euros.
   Relativamente à tramitação do processo, há que referir três tipos de tramitação, de acordo com o carácter da urgência, nomeadamente processos simples e de urgência normal (art.110.º/ 1 e 2), processos complexos e de urgência normal (art.110.º/3, e processos de especial urgência (art.111.º), sendo que nestas situações o juiz pode optar por uma tramitação acelerada, com encurtamento do prazo de resposta do requerido, ou por uma tramitação simplificada, realizando uma audiência oral de julgamento, e decidindo no prazo de 48 horas (art.111.º/1).
   Concluímos que, no caso sub júdice estão reunidos todos os pressupostos impostos pelo art.109.º do CPTA para que Francisco possa utilizar a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias. Apenas de referir que com base no princípio da tutela jurisdicional efectiva e no princípio da efectividade dos direitos, liberdades e garantias entende que, caso não se encontrem preenchidos os requisitos da intimação, o processo poderia ser convolado num processo cautelar, aplicando, para o efeito o art.121º CPTA.
   Também referência para a recorribilidade das decisões em caso de improcedência de pedidos de protecção de direitos, liberdades e garantias que é sempre possível, independentemente do valor da causa – art. 142º/3-a), dada a relevância dos direitos em causa. Por outro lado, o recurso das sentenças que tenham proferido a intimação têm efeito meramente devolutivo já que o objectivo é o de assegurar estes direitos em causa que foram reconhecidos em primeira instância.


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