domingo, 8 de maio de 2011

Recurso hierárquico: uma escolha dos particulares

I

O interesse da distinção entre recurso hierárquico necessário e facultativo assenta em razões históricas. Tempos houve em que ela fazia sentido, pelo menos tendo em conta aquilo que estava estabelecido na lei. Mas como o Direito não é uma realidade estática, muita coisa evoluiu entretanto neste campo, designadamente por força da Revisão Constitucional (RC) de 1989 e do CPTA, que veio ocupar o lugar da antiga LPTA. Talvez tenha chegado a altura de aceitarmos essa evolução e de percebermos que a distinção entre os dois tipos de recursos hierárquicos é apenas históri(c)a, quanto mais não seja naquilo que respeita à realidade prática – porque, em termos teóricos, pode e deve continuar a ser discutida e ensinada, pois sempre se aprende olhando para trás and history does repeat itself.

O recurso hierárquico funcionava, em certos casos (que, na prática, eram a maioria) como pressuposto processual – apresentava-se, portanto, como indispensável para que se pudesse recorrer à via contenciosa. O recurso hierárquico é necessário para se poder transformar o acto do subalterno (não definitivo) noutro contenciosamente recorrível, explica MARCELLO CAETANO. Podemos, então, dizer que, na velha noção de definitividade, a recorribilidade do acto dependia, no fundo, de quem o praticava. Verticalmente definitivos eram apenas os actos:
. praticados pelo mais alto superior hierárquico
. praticados por subalternos ao abrigo de delegação de poderes
. praticados por subalternos no exercício das suas competências exclusivas
. praticados por órgãos sem superiores hierárquicos.
Todos os restantes actos seriam não definitivos - e actos não definitivos dos subalternos tinham como única forma de reacção a via administrativa: o recurso hierárquico, que por isso mesmo se dizia necessário. Só da decisão desse recurso – decisão do superior – se podia recorrer contenciosamente.

Como já referimos, na prática a regra acabava por ser a inimpugnabilidade contenciosa dos actos administrativos (AA), por força das poucas situações em que os actos dos subalternos eram definitivos. Quando o acto a impugnar fosse desde logo definitivo e executório, haveria possibilidade de recorrer contenciosamente desde o momento da sua prática. Assim, nestas situações o recurso hierárquico seria meramente facultativo: uma tentativa de resolução do caso fora dos tribunais, não havendo suspensão do prazo de impugnação contenciosa (ao contrário do que, naturalmente – porque seria de uma injustiça clamorosa se fosse de outra maneira - acontecia no recurso hierárquico necessário).
Em suma, a velha definitividade punha a tónica no autor e não na lesividade do acto.
Da mesma forma que só um acto que constituísse a última palavra em termos de hierarquia podia ser levado aos Tribunais Administrativos, também só o acto final de um procedimento administrativo podia ser impugnado (em rigor, também o poderiam ser os actos que fossem autónomos dentro de um procedimento ou que excluíssem um interessado da continuação de um procedimento em curso).
E se já nesta altura podíamos pensar que isto era limitar bastante o acesso dos particulares à justiça, havia pelo menos uma base legal que sustentava esta situação: a CRP, no seu art 269º/3, que o 25º/1 da LPTA vinha concretizar com a distinção entre recurso hierárquico necessário e facultativo.
Acontece que a CRP (e esse mesmo artigo) foram revistos em 1989, passando esta a garantir a impugnabilidade contenciosa de qualquer acto lesivo de posições jurídicas subjectivas dos particulares independentemente de serem ou não executórias e definitivas. E nesse momento, como não poderia deixar de ser, a doutrina divergiu (bem, já divergia antes, mas deixando de haver a norma constitucional que supostamente sustentava a distinção, tudo muda – ou devia mudar): parte da doutrina entendeu que havia inconstitucionalidade superveniente do 25º da LPTA, enquanto outra parte defendia que não, pois a CRP não pode pretender disciplinar os pressupostos processuais da impugnação de actos (apenas controlá-los, no sentido de se pronunciar se estes se mostrarem desproporcionais/excessivos). E muita tinta correu sobre este assunto, enquanto o legislador ordinário permaneceu na sua inércia, não acompanhando as mudanças que a CRP tinha, claramente, vindo impôr.
Até que foi-se a LPTA e veio o CPTA (mais de dez anos depois da RC). E essse CPTA não só não refere o recurso hierarquico necessário (que terá deixado, assim, de constituir um pressuposto processual), como vem consagrar a impugnabilidade de todos os actos administrativos com eficácia externa que sejam lesivos de posições jurídicas dos particulares (51º). Ora, um acto de um subalterno, ainda que não seja definitivo, não poderá ter eficácia externa? Não poderá lesar direitos? Parece claro que sim. Por outro lado, no seu art 59º, o CPTA estabelece o carácter em regra meramente facultativo do recurso hierárquico, ao admitir que haja recurso contencioso na pendência de recurso hierárquico.
Mas tal não chegou para convencer os cépticos.
Falemos, então, do art 268º da CRP (o tal que garante a impugnabilidade contenciosa de qualquer acto, desde que tenha eficácia externa e lese os particulares), que tem natureza análoga à dos DLG e, como tal, não pode ser restringido no seu núcleo essencial. Não ousando entrar nos meandros do Direito Constitucional, arrisco, no entanto, perguntar: como é que o recurso hierárquico necessário, sendo, no fundo, a negação - ou, se preferirmos, o diferimento - do acesso à justiça de um cidadão lesado nos seus direitos, não é restritivo de um DF? Restritivo sem preencher os requisitos que possibilitam a restrição de um DLG: não é uma restrição fundada na CRP (e, pelo que percebi, se não está prevista, não pode o legislador ordinário vir restringir) e diminui a extensão do núcleo essencial do DLG. Naturalmente que haverá diversas e divergentes opiniões sobre qual será o alcance da expressão conteúdo essencial de um DLG: ora, o art. refere expressamente que abrange todos os actos lesivos e este todos não pode ser ignorado. É importante também que não esqueçamos o que ensina JORGE MIRANDA no seu Manual de Direito Constitucional: mesmo não estando restringida toda a utilidade do direito, pode perfeitamente estar a ser afectado o seu contéudo essencial, subvertendo-se ou invertendo-se o seu valor constitucional. Não será esse o caso? Fica a pergunta, mas penso que do que expus se retira que o 25º da LPTA se tornou supervenientemente inconstitucional, na medida em que a restrição deixou de estar prevista na CRP e não mais se justificava (se é que algum dia se teria justificado..). Parece-me, então, que é de acompanhar aqui a opinião de VASCO PEREIRA DA SILVA, pois não se afigura fácil destruir toda a sua argumentação e muito menos avançar com outra resposta viável a esta questão.
Acresce ainda que temos de nos lembrar que, na dúvida, os direitos devem prevalecer sobre as restrições e o princípio da Proporcionalidade (na sua vertente da proibição do excesso) deve ser respeitado.
Na mesma linha de pensamento, também as disposições contidas em leis avulsas – que parte da doutrina e a jurisprudência defendem que se mantêm inalteradas – sofrerão desse mal (nas palavras de VASCO PEREIRA DA SILVA, extinguiram-se por caducidade, por terem desaparecido as circunstâncias de direito que as justificavam). E parece-me que eventuais disposições futuras que venham prever idêntica restrição também não se justificam, por não terem arrimo constitucional.
Mas a inconstitucionalidade da LPTA não adviria apenas do que acima se expõe. Na verdade, o que está aqui em causa é não apenas um DF ao recurso contencioso, mas também o próprio princípio da tutela jurisdicional efectiva, que o 51º do CPTA veio concretizar. Este princípio implica pôr meios processuais ao dispôr dos particulares, mas também - quanto mais não seja, por uma questão de coerência - não limitar a sua utilização, vedando o acesso a uma protecção subjectiva plena, efectiva, completa. A possibilidade de impugnação de qualquer acto lesivo constitui uma das manifestações deste princípio. Até porque, como alerta VASCO PEREIRA DA SILVA, o prazo de interposição de recurso hierárquico era curto, pelo que não seria de espantar que muitas vezes o particular deixasse passar a data limite de interposição de recurso hierárquico e visse assim inutilizada a possibilidade de recurso contencioso, por este ser necessário.
LUÍS SOUSA FÁBRICA chama a atenção para o facto de a utilidade do recurso hierárquico se encontrar na sua instrumentalidade face a um modelo de organização administrativa muito concentrado. Os princípios da Concentração e da Unidade da Acção Administrativa devem, de facto, ser respeitados, mas naturalmente que, como bem lembra JOÃO MIRANDA, têm de ser conciliados com o princípio da Desconcentração, que favorece a celeridade e a eficiência da AP – e, consequentemente, uma resposta mais pronta às pretensões dos particulares.

II


Esta análise histórica – histórica porque, com o surgimento do CPTA, o legislador ordinário acabou por acompanhar a evolução da Constituição e o problema da inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário deixou de se colocar nos mesmos termos – tem incontestável interesse para percebermos onde nos encontramos hoje: em que ponto da situação, que caminho se percorreu para chegar até aqui e o que é que ainda falta desbravar (leia-se: consagrar?). Ora, estando o recurso hierárquico necessário indiscutivelmente afastado pelo CPTA e tendo-se tornado, em vez de obrigatório, útil (VASCO PEREIRA DA SILVA) ou, se preferirmos, recomendável (PAULO OTERO) – uma vez que o recurso às garantias administrativas interrompe os prazos de impugnação contenciosa, o que permite ao particular escolher a via que mais lhe convém sem ver precludido o seu direito ao recurso contencioso – a discussão não mais se centra na inconstitucionalidade das disposições que o prevêem e na restrição que está a ser feita a um DF, mas sim:
  1. no que se deve retirar do artigo 51º/1 CPTA
  2. no que fazer com as disposições do CPA que ainda prevêem o recurso hierárquico necessário
Há uma corrente da doutrina que se inclina para uma interpretação minimalista/ restritiva, que entende que o CPTA terá vindo a afastar as disposições do CPA que consagram o recurso hierárquico necessário, mas já não as leis especiais que o prevêem. E aqui percebemos que, embora a discussão tenha mudado o seu centro, os velhos (mas, pelos vistos, intemporais) argumentos continuam a poder ser invocados como resposta a essa tese: mantém-se o problema de se estar a restringir um DF que não só decorre de um importante princípio constitucional como tem ainda uma norma constitucional a concretizá-lo (268º/4); mantém-se, nesses casos previstos nas leis avulsas, o problema do particular não poder optar por ouvir uma decisão de um órgão à partida muito mais imparcial do que o superior hierárquico do autor do acto - pelo simples facto de um pertencer também à própria Administração e o outro (os Tribunais Administrativos) estar de fora: um verdadeiro observador, portanto. And so on.
Todos esses argumentos permanecem válidos, mas a questão central agora é perceber por que é que faz ou não sentido que a previsão de recurso hierárquico necessário esteja em vigor nas leis especiais quando a regra geral que o previa desapareceu. Se essas leis especiais consagrassem uma excepção à regra geral, podia invocar-se o argumento lei geral posterior não derroga lei especial anterior.
Acontece que essas leis especiais não eram especiais no sentido de serem excepcionais, porque, como nota VASCO PEREIRA DA SILVA, limitavam-se a reiterar a regra geral constante do CPA. Tratam-se, por conseguinte, de normais gerais contidas em leis extravagantes. Assim sendo, com o desaparecimento da regra que elas se limitavam a confirmar, terão caducado por falta de objecto – por desaparecimento das circunstâncias de Direito que as justificavam, como já referimos acima.
Diferentemente pensa MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, que entende que as leis avulsas só poderiam deixar de existir por disposição expressa, o que não acontece neste caso, pois de facto o legislador não alude no CPTA ao desaparecimento dessas normas. Daí, parte da doutrina retira então que a manutenção da previsão do recurso hierárquico ncessário em legislação especial terá sido uma opção do legislador totalmente consciente e deliberada.
Parece-me que, de certo modo, o recurso hierárquico necessário onera os particulares com o risco de uma má actuação da AP. Sendo certo que podem recorrer contenciosamente depois do recurso gracioso, não me parece correcto nem concordante com o princípio da proporcionalidade que eles sejam obrigados:
  1. a recorrer para a Administração (para todos os efeitos, a autora do acto) e não para um órgão jurisdicional (portanto, um órgão imparcial e de controlo);
  2. a ter de esperar por essa decisão da Administração, da qual poderão ter de recorrer depois para o Tribunal (é que, convenhamos, nem sempre se tem todo o tempo do mundo).

E é o próprio FREITAS DO AMARAL, acérrimo defensor da pertinência do acolhimento desta distinção ainda hoje, que afirma: O recurso hierárquico e o recurso contencioso são duas garantias distintas, totalmente estranhas uma à outra (apesar de cumuláveis, são inteiramente independentes). Fá-lo, é certo, em discussão sobre outras questões (suspensão dos prazos dos recursos), mas as suas palavras não valerão também para aquilo que se discute aqui? Se são duas garantias independentes, não poderemos optar por qualquer uma delas ab initio?
A consagração da distinção entre recurso hierárquico necessário e facultativo, ainda que afastada em sede geral e tendo acolhimento apenas em leis avulsas, acaba por ser um obstáculo – mais um - à evolução do Contencioso Administrativo num sentido cada vez mais subjectivista e protector dos particulares.


Elementos de apoio

CADERNOS DE JUSTIÇA ADMINISTRATIVA
.De necessário a útil: a metamorfose do recurso hierárquico, Vasco Pereira da Silva
. Em defesa da inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário, João Miranda

MANUAIS
. Direito Administrativo Geral (Tomo III), Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos
. O Novo Regime de Processo nos Tribunais Administrativos, Mário Aroso de Almeida
. Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Jorge Miranda
. Conceito e Natureza do Recurso Hierárquico, Diogo Freitas do Amaral

  
Inês Vouga 
 

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