terça-feira, 12 de abril de 2011

Art. 71º/2 CPTA, um verdadeiro limite à pronúncia dos tribunais?


No seguimento do estudo da acção administrativa especial, nomeadamente nos casos de condenação à prática de acto devido previsto nos arts. 66º e s.. do CPTA e da leitura de uma interessante análise crítica feita pela Dr.ª Maria Francisca Portocarrero na Revista da Ordem dos Advogados, pareceu-me de interesse falar da problemática subjacente ao art. 71º/2 CPTA.
O art. 71º do CPTA incide sobre a delimitação dos poderes de pronúncia do tribunal na matéria da condenação à prática de actos administrativos, novidade trazida pela Reforma de 2004 e bastante aplaudida por parte da doutrina, já que veio alargar os poderes dos tribunais. Contudo é o nº 2 que mais reticências tem levantado em alguma doutrina. Este preceito começa por enunciar dois requisitos dos quais faz depender a sua aplicação, são eles a “formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa” resultante da emissão do acto e “a apreciação do caso concreto não permita identificar apenas uma solução como legalmente possível”, ou seja casos em que é necessário o exercício da discricionariedade, acabando o artigo por concluir que preenchidos estes requisitos o tribunal não poderá determinar o conteúdo do acto a praticar, devendo explicitar as vinculações a observar pela Administração.
Ora, o busílis da questão resulta exactamente desta parte final, o preceito que começa por limitar os tribunais não acabará por conceder um poder de direcção/controlo excessivamente “generoso” aos mesmos violando assim o princípio constitucional da separação de poderes? Não estaremos então a comprimir a discricionariedade atribuída à Administração ao permitir que os tribunais influenciem a decisão, operando assim uma inversão de papéis? Será viável perante um preceito tão equívoco esperarmos por uma auto-contenção dos tribunais?
Como refere MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, o nº2 não pretende de todo dizer a que é que o tribunal pode e deve condenar a Administração, segundo este autor, a única pretensão subjacente a este preceito é “estabelecer um conjunto de parâmetros ou de linhas orientadoras, identificando os grandes tipos de situações com que o tribunal se pode ver confrontado quando for chamado a condenar a Administração à prática de um acto administrativo”, muito bem, mas se assim é, não deveria o legislador ter optado na Reforma de 2004 por outra expressão que não “explicitar as vinculações a observar”, parece-me que se optou por o uso de algo bastante vago, deixando o que sejam vinculações a observar nas mãos dos tribunais e podendo os mesmos “cair na tentação de transformar aqueles parâmetros de juridicidade de limites em critérios directos de conduta” nas palavras de SÉRVULO CORREIA.
Além de que, como refere MARIA PORTOCARRERO esta explicitação de vinculações corresponde ao que no projecto do CPTA se tinha por “as directivas de juridicidade do iter valorativo e cognoscitivo que conduz a decisão administrativa”, sem no entanto estabelecer qual deva ser o conteúdo do acto. Vê-se o quão pertinente é a observação da autora, pois esta referência no projecto do CPTA vem demonstrar que não é possível estabelecer directivas do iter valorativo e cognoscitivo que conduz à decisão da Administração sem estabelecer indirectamente o conteúdo do acto a ser emitido. Assim sendo, correspondendo (como parece...) as valorações a tais directivas, não fará sentido a ressalva da parte final do art. 71º/2 CPTA, pois mais não será do que um “limite mascarado” ou “entorse” jurídica nas palavras da autora supra mencionada.
É claro que os tribunais, nunca poderão ter competência decisória relativamente a situações de interesse público concreto para as quais o legislador previu uma decisão administrativa discricionária, pois o órgão de eleição quanto a juízos técnicos é a Administração, sendo esta que dispõe dos melhores meios para decidir nestes casos. Mas um olhar menos atento ao nº2 do art. 71º poderá perceber que uma explicitação como a prevista na parte final do preceito levará a que o conteúdo do acto venha a ser bastante influenciado, distorcendo-se assim a natureza discricionária que deveria resultar deste, assim como as regras de competência.
A interpretação mais correcta a fazer do artigo é a apresentada por VIEIRA DE ANDRADE que propõe que em todos os casos em que a emissão do acto administrativo envolva a formulação de “valorações próprias do exercício da função administrativa”, o juiz terá de limitar-se a uma condenação genérica, com as indicações vinculativas que puder retirar das normas jurídicas aplicáveis, sem pôr em causa a autonomia da decisão do órgão administrativo.
É possível admitir, tal como fazem alguns autores, a adopção de outros meios por parte do legislador, a título de exemplo é indicado o caso da pronúncia judicial declarativa tal como é adoptada no direito comunitário quando haja uma omissão da instituição comunitária em causa, onde o juiz apenas se limita a declarar que se verifica uma violação (art. 232º do Tratado de Roma). Parece-me que esta solução seria insuficiente, devendo o tribunal administrativo além da verificação da violação, emitir uma recomendação não vinculativa explicitando o que entende que deveria ou deverá ser feito pela Administração, garantindo assim a autoria administrativa e a sua autonomia decisória. De certa forma, acabaríamos por ter um regime bastante semelhante ao previsto no art. 77º CPTA relativo à declaração de ilegalidade por omissão.
Explanados os pontos-chave do tema, devo dizer que não chego ao extremismo apresentado pela autora que chega mesmo a admitir uma “teoria da conspiração” pois considera que a intenção por detrás do art. 71º/2 CPTA é a rule of law e as suas virtudes quanto à predominância dos tribunais nos sistemas de common law. Porém considero, com todo o respeito, que o preceito deveria estar construído de maneira mais cautelosa e que deve ser alvo de uma interpretação restritiva, não ao ponto de eliminarmos esta “novidade” trazida pela Reforma de 2004 em que se atribui aos tribunais um poder de pronúncia e que é de aplaudir, mas sim de modo a que não seja tão sentido este choque da discricionariedade da Administração com a explicitação de vinculações por parte dos tribunais, para que não tenhamos a Administração a seguir apenas directivas emanadas dos órgãos jurisdicionais.

João Carlos Neto Peixe, nº 17356

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