segunda-feira, 4 de abril de 2011

Da sujeição da Administração ao bloco de juridicidade: a problemática das omissões

1. A questão que aqui se vai tratar é, de certo, velha para quem não é, como eu, novo nestas andanças (do Contencioso e da Psicanálise..). Mas para os que só há pouco tempo começaram a ler sobre o tema e a pensar em todas as dificuldades que a necessidade de harmonização do interesse público com os direitos subjectivos dos particulares (de CADA particular) acarreta, prevalecem, em especial na análise de casos concretos, as dúvidas sobre as certezas. Ainda mais quando essa harmonização nos aparece como sendo indissociavél de uma lógica de eficiência e celeridade na actuação da Administração Pública (AP). Como nota Juliana Coutinho*, «O tempo da Justiça não é o tempo da pressa, do frenesim. O tempo em que tudo se faz pela metade e no intervalo de alguma coisa (…)» mas «também não é todo o tempo do mundo». Tal como acontece com a Justiça, se a actuação da AP não pode ser precipitada, também não deve ser demorada: «Chegar quando já não faz sentido».
E se assim em abstracto já nos parece complexa esta ponderação, mais frágil e inconstante ela se torna na aplicação ao caso concreto, pois à medida que vão surgindo todos os dias (sete vezes por semana, porque aqui não valem só os dias úteis...) as mais variadas situações a clamar tutela, vamo-nos apercebendo que as linhas de fronteira que separam os factores a serem ponderados não se traçam sempre à mesma distância, no mesmo lugar. E se não é líquido que possam ser transpostas, também não é certo que não as possamos cruzar de quando em vez.


2. Ao lembrar, por exemplo, a chamada Reserva de Administração - há uma certa zona protegida da AP: situações ou matérias em que só ela pode decidir como, quando e se deve praticar o acto – pensamos, de imediato, que faz todo o sentido que assim seja. Porém, logo concluímos que esse espaço de reserva é-o, afinal, uma zona só mais ou menos protegida, porque tem de ser compatibilizado com o exercício dos poderes jurisdicionais. Agora que estão ultrapassados os traumas da infância difícil do Contencioso Administrativo, não mais se defende que o Princípio da Separação de Poderes implica que os poderes (leia-se: as funções do Estado) sejam completamente estanques. Sabe-se, aliás, que não o devem ser, que devem antes complementar-se e limitar-se reciprocamente. A função jurisdicional tem a sua intervenção no campo reservado às outras funções legitimada devido à sua natureza de controlo – neste caso, de controlo da actividade da AP com vista a tutelar plena e efectivamente as posições jurídico-subjectivas dos particulares. Acresce que, estando a AP vinculada pelo bloco de juridicidade (e não mais de mera legalidade), está, então, necessariamente abrangida por esta possibilidade de controlo por parte da função jurisdicional. Que é como quem diz: não há por onde fugir...

 

3. De entre todas as possibilidades e formas de controlo da actuação da AP, há uma questão que me desperta especial interesse e curiosidade – quem sabe, se por, sendo da maior importância, ter sido sempre votada à irrelevância, a uma espécie de 'desterro' que é quase incompreensível para quem começa a estudar Administrativo no século XXI, quando ainda há muito para fazer mas quase tudo já foi teorizado e concretizado.
Houve uma mudança – se preferirmos, uma evolução - do pensamento jurídico global no sentido de se ir dando cada vez mais relevo às omissões, que se foram progressivamente auntonomizando – veja-se o Direito Penal (diz o art. 10º do Código Penal: «Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo (…))» ou o art. 486º do Código Civil, com base no qual se emancipa, hoje, a doutrina dos deveres de segurança no tráfego).
As omissões da Administração Pública, embora tenham demorado a afirmar-se, não ficaram à margem desta tendência, tendo-se autonomizado enquanto forma de actuação administrativa. A prova de que ocuparam, finalmente, o lugar que mereciam no Direito Administrativo – têm hoje importância processual e substantiva - passa, como não poderia deixar de ser, pela afirmação de um Contencioso Administrativo de garantia dos particulares e em especial pelo acolhimento pelo CPTA da chamada Acção de Condenação à Prática de Acto Devido (verdadeira acção condenatória, e não meramente declarativa). Como lembra Vasco Pereira da Silva, as transformações que o Direito Administrativo precisava de sofrer (para a superação dos malfadados traumas da sua infância difícil...) nunca poderiam não ter sido lentas, porque eram profundas (o que não significa, naturalmente, que tivessem de ter sido tão lentas, especialmente em Portugal). Só isso explica a longevidade do reinado da insindicabilidade das omissões administrativas, que eram verdadeiras prerrogativas do poder, como explicam Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, em virtude da AP apenas poder ser demandada contenciosamente pelas suas condutas positivas. Desta irrelevância em sede de Contencioso resultava uma irrelevância substantiva.

4. Felizmente, o Direito Administrativo Alemão, demarcando-se do Direito Administrativo Francês e dos tradicionais dogmas (traumas) por ele invocados, passou a admitir que a Administração fosse demandada pelas suas omissões (respeitando sempre os limites da discricionariedade). Portugal seguiu-lhe as pisadas mais tarde, passando primeiro por uma fase intermédia que consagrava a figura do Indeferimento Tácito, cuja utilidade para o particular residia apenas no facto de poder recorrer contenciosamente dessa 'decisão' (melhor (?) dizendo, dessa não-decisão-que-no-entanto-lhe-negava-uma-pretensão); ainda nessa fase, passou a omissão a poder equivaler também a um deferimento tácito, o que significava que a posição jurídica do particular podia ser exercida sem que este tivesse de esperar por decisão da AP. Tudo isto, obviamente, nas situações em que já tivesse passado o prazo para a AP se pronunciar sobre uma pretensão de um particular.
Por fim, acabou por surgir a nossa condenação à prática de acto legalmente devido: consagrada no CPTA, integrada no quadro da acção administrativa especial, divide-se em duas modalidades distintas. Está sempre em causa um acto administrativo (AA) que devia ter sido emitido e não foi, embora depois haja que se destrinçar se, na perspectiva do requerente, a acção é intentada porque o AA devido foi simplesmente omitido ou porque um AA foi recusado quando não o devia ter sido. Daqui se retira que, nas situações do primeiro caso, o que se pretende obter é a prática de um AA que não foi emitido, enquanto que as situações do segundo visam também a prática de um AA, mas em substituição de um outro de conteúdo desfavorável anteriormente praticado.
O que se entende por acto legalmente devido? Explica Vieira de Andrade:
devido porque legalmente obrigatório nas circunstâncias do caso concreto.
legalmente obrigatório num sentido muito amplo: a sua omissão ou recusa é contrária à ordem jurídica. Ou seja, a imposição da prática do AA pode decorrer de normas constitucionais, internacionais ou comunitárias, de um princípio jurídico e até mesmo de um contrato. E pode ainda decorrer de «situações de inactividade comprovada da AP perante valores comunitários relevantes».

É o regresso do Direito Administrativo à teoria geral do Direito: um comportamento vinculado tem de o ser em qualquer circunstância, não podendo haver o tipo de excepções que até há bem pouco tempo se permitia que existissem e - a gravidade da questão reside aqui - passassem impunes. Tinha de estar prevista uma forma de reconstituir a situação hipotética que existiria caso tivesse sido praticado o acto que foi omitido. Concluindo: a sujeição da Administração ao bloco de juridicidade não põe em causa os seus poderes discricionários, já que se fala, precisamente, em actos vinculados.


5. Nas palavras de Marcelo Rebelo de Sousa, «as omissões são virtualmente infinitas, na actividade administrativa como na vida em geral». Razão suficiente, parece-me, para merecerem um lugar ao sol em sede de Contencioso Administrativo.

 
* Assistente da FDUP



Inês Vouga
Aluna nº 21749 - subturma 9


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