sábado, 21 de maio de 2011

O Ministério Público no Contencioso Administrativo

O Ministério Público (doravante MP), dispõe de um Estatuto próprio, forma um grupo de magistrados responsáveis e hierarquicamente subordinados (arts 219-4 CRP e 76-1 do Estatuto), com autonomia relativamente ao Governo (art 2) e à magistratura judicial (art 75-1), cuja gestão e disciplina cabe à Procuradoria-Geral da República, que é presidida pelo Procurador-Geral e inclui o Conselho Superior do Ministério Público (arts 219-2, 4 e 5, e 220 CRP).
O MP é dotado de independência externa (perante o Ministro da Justiça), mas não é um orgão de soberania, e não se confunde com os orgãos do poder judicial, pois não tem competência para a prática de actos materialmente jurisdicionais.
A intervenção do Ministério Público na jurisdição administrativa e fiscal está subordinada ao estabelecido no art. 219 CRP e as atribuições que exerce não são mais do que concretizações e especialidades dessa modelação geral de base constitucional, bem como da densificação que da mesma é feita nos artigos 1.º a 6.º do Estatuto do Ministério Público (EMP).
Conforme resulta dos arts 219-1 CRP, 51 ETAF, e art 3-1 EMP cabem ao MP diversas funções relevantes no âmbito das relações jurídicas administrativas: defender a legalidade, fiscalizar a constitucionalidade dos actos normativos, representar o Estado e outros entes públicos, bem como determinadas pessoas indicadas por lei (ausentes e incapazes), defender grandes interesses colectivos e difusos, patrocinar os trabalhadores e suas famílias na defesa dos seus direitos sociais.
Dentro dos poderes processuais que o MP goza para o cumprimento das suas funções podemos apontar os seguintes: em primeiro lugar, a iniciativa processual  consagrada expressamente nos casos dos arts 55-1 b), 73-3, 68-1 c), 77, 112-1, 124-1, 130, 40-1 b) e 2 c), 9, 104-2, 141, 155-1, 152, 135, 62 CPTA ; intervém, de forma imparcial, em defesa de direitos fundamentais, valores comunitários ou interesses públicos especialmente relevantes, poderes processuais relevantes nas acções administrativas especiais iniciadas por particulares, poderes de iniciativa no âmbito da instrução e ainda nos recursos jurisdicionais; cabe-lhe a representação do Estado nas acções administrativas em que este seja parte (em matéria de relações contratuais e de responsabilidade civil), embora também intervindo ai como defensor da legalidade (art 11-2 CPTA); e por fim, compete ainda ao MP a representação de outras pessoas colectivas públicas ou de outros interessados (incapazes, incertos ou ausentes, e trabalhadores e suas famílias na defesa dos seus direitos de carácter social nos termos do art 3- a) e d) EMP) nos casos expressamente previstos na lei.
Na realidade, tal como sucede no processo civil, também no processo contencioso administrativo, antes como depois da reforma, são tais poderes exercidos intervindo quer a título principal – quando actua uma legitimidade própria para a defesa de bens e valores colocados à sua tutela ou quando representa o autor ou o réu – quer como parte acessória – quando exerce funções de defesa da independência e da legalidade na função jurisdicional e/ou de assistência.
            Com o novo art 85 CPTA, houve uma alteração profunda no modelo tradicional de intervenção do Ministério Público nos processos em que este não figure como parte, e isto deu-se quanto ao conteúdo, ao momento e ao modo de intervenção.
            Seja qual for o entendimento preconizado sobre os poderes processuais do Ministério Público, nesta como noutras áreas do direito, a reforma operada não podia, obviamente, esvaziar a função de representação em juízo do Estado, por tal ir contra a consagração constitucional dessa competência.
            Assim, o CPTA acolheu, por imposição dos artigos 219 CRP e arts 1 a 6 EMP, uma solução de continuidade face ao regime anterior, por continuar a reconhecer-se um papel processual relevante ao MP para fiscalização da legalidade (art 51 ETAF), sobretudo ao poder geral de iniciativa, mas também, embora limitado à defesa de valores comunitários, ao poder de dar parecer sobre o mérito e o de invocação de novos vícios, apesar de se lhe terem retirado alguns dos seus poderes processuais, limitando a intervenção na fase instrutória e suprimindo a vista final e a participação da sessão de julgamento (arts 58-2, 62 e 73, 77, 85, 104-2, 146, 152, e 155 CPTA).
            É o exercício da acção pública que justifica o estatuto processual do Ministério Público no processo contencioso administrativo e ser a acção pública para defesa da legalidade objectiva a dimensão mais carismática da intervenção do Ministério Público nesta área funcional.
            No âmbito das acções administrativas especiais da iniciativa dos particulares (em que o MP não é parte formal) o CPTA reequacionou a intervenção processual do MP na acção impugnatória quanto ao tipo de intervenção (por requerimento e não por vista), quanto ao conteúdo dessa intervenção (art 85 números 2 a 4, e quanto ao momento em que deverá ser concretizada art 85-5).
            Ao MP  e aos titulares de interesse directo na anulação do acto, mantém-se um conceito muito vasto de legitimidade para a impugnação de actos, e até se alarga a pessoas e aos órgãos administrativos, bem como, no âmbito da acção popular, a qualquer cidadão e a titulares de interesses difusos, incluindo as autarquias (arts 55-1 a),  9-2 e 40 CPTA).
            Conforme aponta o Professor José Vieira de Andrade, surge a questão da diversidade de funções cometidas ao MP ser susceptível de causar problemas: derivados  quer pelo  facto deste poder desempenhar no mesmo processo funções incompatíveis entre si, quer de desempenhar um papel dúplice como parte processual, surgindo por vezes do lado do Estado, defendendo-o contra as acções do particular, e por vezes contra a Administração, ao lado do administrado ou em vez dele.
            O Professor José Vieira de Andrade defende que pela configuração actual do MP este deve ser visto apenas como um defensor da legalidade, quer intervenha como parte principal, quer  como auxiliar do juiz, e defende ainda que apesar da referência constitucional à representação do Estado, não há razão para no processo administrativo actual atribuir ao MP a representação dos interesses patrimoniais do Estado-Administração nem das Regiões Autónomas e de outras pessoas colectivas públicas, quando a representação ou o patrocínio podem ser assegurados por funcionários dos serviços jurídicos ministeriais ou por advogados contratados, nem sequer para lhe conferir o encargo de promoção processual do interesse público, quando este possa ser prosseguido por órgãos administrativos. O autor entende portanto que só nestes termos será possível a resolução do conflito entre a autonomia do MP e a representação do Estado-parte, bem como, em determinadas situações, a dificuldade de conciliação da defesa da Administração com a defesa da legalidade.
Não obstante este entendimento, o MP continua efectivamente a deter no novo contencioso importantes poderes de iniciativa e intervenção processuais para defesa da legalidade, do interesse público e de bens comunitários ou valores socialmente relevantes, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.

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BIBLIOGRAFIA
- MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, comentário ao Código de Processo nos Tribunais administrativos, Almedina, 2005
- JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, 9ª ed., Coimbra, 2007.

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